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A César o que é de César: (in)compreensões sobre o Materialismo Histórico

Por Darlan Reis Junior, historiador.


O termo Materialismo Histórico é utilizado para designar a teoria e o método de interpretação da História proposto por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Sabe-se que nenhum deles ostentou a condição de “historiador”, inclusive foram excluídos do âmbito acadêmico e científico de sua época, sofrendo perseguição policial e política. Mesmo assim, sua concepção da História influenciou e influencia até hoje os historiadores, além de ser importante arsenal para a luta política.

"A influência de Marx sobre os historiadores, e não só historiadores marxistas, baseia-se, contudo, tanto em sua teoria geral (a concepção materialista da história), com seus esboços, ou pistas, sobre a compleição geral do desenvolvimento histórico humano a partir do comunalismo primitivo até o capitalismo, quanto em suas observações concretas relativas a aspectos, períodos e problemas do passado". (HOBSBAWM: 1998, p.173-174)


É inegável que o marxismo sofreu forte crítica nos meios acadêmicos devido à crise do chamado “socialismo real”. Baseado no fato que os regimes que se intitulavam socialistas terem como ideologia oficial o marxismo-leninismo, com a derrocada dos mesmos, a teoria marxista foi proclamada obsoleta pela imprensa burguesa e assim considerada por muitos no mundo acadêmico. No entanto, antes dessa “última” crise do marxismo, é válido lembrarmos que, em muitas outras ocasiões tal concepção foi assim considerada.


"Inútil falar da ciência e da filosofias burguesas, ensinadas escolasticamente pelos professores oficiais para embrutecer as novas gerações das classes possuídoras e ‘amestrá-las’ contra os inimigos de fora e de dentro. Esta ciência não quer nem ouvir falar de marxismo, declarando-o refutado e destruído; tanto os jovens homens de ciência que fazem carreira refutando o socialismo, como os velhos decrépitos, guardiães dos legados de toda a espécie de ‘sistemas’ caducos, se lançam sobre Marx com o mesmo zelo". (Lênin: 1979, p.40)


A problemática colocada pela concepção materialista da história, em nossa opinião é válida na atualidade. A busca da compreensão ao mesmo tempo, holística e dinâmica, a percepção da sociedade constituída por sistemas de relações entre os seres humanos, a elaboração de uma história analítica, estrutural, explicativa, eliminando o arraigamento estático da história, se não são contribuições originais do materialismo histórico, são pelo menos, elementos importantes que estruturam seu pensamento e dão uma unidade à teoria. Quanto às críticas de sua superação, devem ser travadas tanto no âmbito acadêmico, quando se tratar de assuntos nessa área, assim como no âmbito político, se essa for a seara do combate. É inerente ao materialismo histórico a discussão em níveis políticos.


"A intenção original do materialismo histórico era oferecer fundamentação teórica para se interpretar o mundo a fim de mudá-lo. Isso não era apenas um slogan. Tinha um significado muito preciso. Queria dizer que o marxismo procurava um tipo especial de conhecimento, o único capaz de esclarecer os princípios do movimento histórico e, pelo menos implicitamente, os pontos nos quais a ação política poderia intervir com mais eficácia. O que não significa que o objetivo da teoria marxista fosse a descoberta de um programa “científico” ou de uma técnica de ação política. Ao contrário, o objetivo era oferecer um modo de análise especialmente preparado para se explorar o terreno em que ocorre a ação política". (WOOD, 2003, p.27)

A “intenção original” não era fornecer uma teoria que servisse à História, mas pelo contrário, utilizar-se da ciência histórica para produzir uma teoria que permitisse uma prática política transformadora do mundo. Uma intenção que, se não foi atingida segundo seus críticos, em seus objetivos iniciais, não pode ser negada. Ao analisar as origens do materialismo histórico, em seu conhecido artigo intitulado Marx e a história, Pierre Vilar nos fala desse sentimento que move o historiador marxista:

"Jamais alguém se torna marxista lendo Marx; ou pelo menos, apenas o lendo; mas olhando em volta de si, seguindo o andamento dos debates, observando a realidade e julgando-a: criticamente. É assim também que alguém se torna historiador. E foi assim que Marx se tornou". (VILAR, 1987, p.97)

Consideramos os pressupostos do marxismo válidos para a análise histórica. A teoria serve como referência para a produção científica, sendo o ponto de partida para a compreensão do que foi proposto na problematização e não o ponto de chegada, o “porto seguro” que tem as respostas para todos os problemas.



Charge de Stéphane “Charb” Charbonnier para o livro "Marx, manual de instruções"



Quando são definidos claramente os pressupostos teóricos, as bases conceituais, os objetivos do que se estuda, o debate que se trava na ciência histórica se enriquece. A validade ou não do materialismo histórico enquanto concepção histórica só pode ser comprovada na prática, e nesse caso de âmbito acadêmico, com pesquisas que partindo de seus pressupostos, apresentem uma produção de qualidade, reconhecida inclusive pelos autores não-marxistas. Assim deve ser uma universidade: a diversidade de opiniões e a precaução contra o sectarismo e o dogmatismo. Simplesmente refutar uma concepção a partir de “pré-conceitos” ou de afirmações genéricas de impossibilidade da análise da realidade, não nos parecem atitudes saudáveis em um ambiente científico e acadêmico. Retornamos a Eric Hobsbawm (op.cit.,p.184):


"A ciência é um diálogo entre diferentes opiniões baseadas em um método comum. Apenas deixa de ser ciência quando não há método para decidir qual das opiniões em contenda está errada ou é menos frutífera. Infelizmente esse costuma ser o caso na história, mas de modo algum, apenas na história marxista. (4) A história marxista hoje, não é, nem pode ser, isolada do restante do pensamento e da pesquisa histórica. Esta é uma proposição bilateral. Por um lado, os marxistas não mais rejeitam – exceto como fonte de matéria-prima para seu trabalho – os escritos de historiadores que não afirmam ser marxistas, ou que de fato, são antimarxistas. Se constituem boa história, devem ser levados em conta. Isso, contudo, não nos impede de criticar e mover batalhas ideológicas até mesmo contra bons historiadores que atuam como ideólogos".

O marxismo está incluso no paradigma moderno. Faz parte da mesma tradição do Iluminismo, se bem que busca radicalizar a racionalidade daquele movimento, se proclamando a visão de mundo do proletariado, com base materialista e dialética. Karl Marx e Friedrich Engels partiam do pressuposto materialista e existem inúmeros exemplos do debate com as concepções idealistas.

"O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo - , que no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a ‘autoconsciência’ ou o ‘espírito’ e ensina, conforme o evangelista: ‘O espírito é quem vivifica, a carne não presta’. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito pela sua própria imaginação. O que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura. Ela representa, para nós, a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico , que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental". (MARX & ENGELS, 2003, p.15)

Quando se utiliza os pressupostos marxistas, pretende-se compreender a realidade. E transformá-la conscientemente. Uma das particularidades na maneira de investigar a partir dessa concepção é a atitude de não temer o confronto com as autoridades científicas estabelecidas (confronto intelectual, deixemos claro). Além disso, não acreditar na suficiência da dúvida metódica prévia e única, fazendo a crítica rigorosa, permanente e contínua dos próprios resultados e avanços. Cabe então a questão: até que ponto é possível a pesquisa a partir da concepção Materialista da História? Segundo seus críticos, ela estaria permeada de posicionamentos “políticos” e “determinismos” que a inviabilizariam no nosso tempo.


A concepção materialista da História considera as sociedades como constituídas historicamente, em movimento. As condições materiais da existência humana são imprescindíveis nessa compreensão da História. Como demonstra Hobsbawm (1998, p.155-170), a influência marxista mais eficaz foi a de transformar a História em uma das ciências sociais, implicando no reconhecimento de que as sociedades constituem-se de sistemas de relações entre os seres humanos, na existência de tensões nas mesmas, na existência de uma estrutura social e de sua historicidade.

Ao debater com Proudhon, Marx (2003, p.94-98) em seu livro “A Miséria da Filosofia”, discutiu a questão da História se constituir a partir da ordem do tempo ou da sucessão das idéias.

"Os materiais dos economistas são constituídos pela vida ativa e atuante dos homens, os do senhor Proudhon pelos dogmas dos economistas. Mas quando não se visa o movimento histórico das relações de produção, de que as categorias mais não são do que a expressão teórica, quando nessas categorias apenas se pretende ver idéias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, somos sem dúvida obrigados a indicar como origem desses pensamentos o movimento da razão pura. (...) Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material produzem também os princípios, as idéias, as categorias, de acordo com suas relações sociais. Por isso, essas idéias, essas categorias, são tão pouco eternas como as relações que exprimem. São produtos históricos e transitáveis.
Existe um movimento contínuo de aumento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas idéias; de imutável só existe a abstração do movimento – mors immortalis".

Nos tempos em vivemos, observamos um repúdio ao que seriam as “histórias grandiosas” (segundo seus críticos), caracterizadas como reducionistas e deterministas. Isso acompanhado da forte antipatia por abstrações sociológicas, e caracterizado pelo pessimismo permanente. Em nome da exaltação do autêntico e do particular, confunde-se diferença com desigualdade, natureza com história. É o discurso da negação da racionalidade: “não há centro”, “não há sistema, mas sim muitos tipos de poder e discurso”.


Se não há um sistema, não poderíamos chegar a origem da opressão, não poderíamos transformar o mundo, mas sim, no máximo, “vivenciarmos” e “sentirmos”. O que se observa na prática é o profundo processo de fragmentação do trabalho de investigação nas ciências humanas, o “afirmar-se primeiro em nome de sua especialidade”, perdendo-se a perspectiva holística e tomando dessa forma um posicionamento político que atua no sentido de conservar o status quo, situação combatida pelo marxismo. É preciso superar a falsa dicotomia entre a análise política, social, econômica e cultural. É preciso reconhecer a historicidade das relações humanas. Como disseram Marx e Engels, “Tudo o que era sólido desmancha no ar.”

Referências


HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LENINE, V. I. Marxismo e Revisionismo, in: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979, p. 40-46.

MARX, Karl. Miséria da Filosofia. Resposta à Filosofia da Miséria do Senhor Proudhon (1847). São Paulo: Centauro, 2003.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família ou A Crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2003.

VILAR, Pierre. Marx e a História, in: HOBSBAWM, Eric, org. História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 91-126.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo – a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

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