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A nostalgia do que não fomos: o caso do Brasil

Por Darlan Reis Jr., historiador.


Ao chegarmos no ano do bicentenário da independência do Brasil, uma série de eventos propõem a reflexão sobre este processo: a formação do povo brasileiro, a construção de uma suposta identidade nacional, a organização do estado nacional. Eventos promovidos por universidades, grupos de estudos, entidades ligadas à categoria dos historiadores, e também a grande mídia, e movimentos políticos dos diferentes campos políticos. É comum que nas datas “redondas”, por exemplo, dez, cinquenta, cem, duzentos anos, ocorram debates, festas, protestos, propagandas, eventos “cívicos”, para a comemoração ou crítica dos acontecimentos.

Qual é a importância desse tipo de discussão para o atual momento brasileiro? E qual é o alcance da discussão entre a população?

No ano 2000, por exemplo, ocorreram “comemorações” dos supostos quinhentos anos do Brasil, ou da “descoberta” do Brasil por Pedro Álvares Cabral.



"Índio protesta em frente ao Palácio do Planalto contra a comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil" - Legenda da foto e Fonte: Memorial da Democracia



"Os presidentes Jorge Sampaio, de Portugal, e Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, plantam juntos uma semente de pau-brasil". Legenda da foto e Fonte: Memorial da Democracia


Enquanto a Rede Globo de Televisão promovia de forma massiva a campanha dos “500 anos do Brasil” em sua programação – jornalística, do entretenimento, na área comercial, fazendo coro com a divulgação da versão política do Governo Fernando Henrique Cardoso, a reflexão promovida pela área de História era solenemente ignorada. Até vender mercadorias alusivas ao tema como “o relógio dos 500 anos”:

"O Relógio dos 500 Anos foi um relógio comemorativo aos 500 anos do descobrimento do Brasil, desenhado pelo designer austríaco Hans Donner. Em 1998, o relógio passou a ser exibido todos os dias, nos intervalos comerciais da Rede Globo, com o Horário de Brasília e os dias que faltavam para 22 de abril de 2000, quando se completavam os 500 anos". (https://www.wikifox.org/pt/wiki/Rel%C3%B3gio_dos_500_Anos )

"Relógio dos 500 Anos Parede". Legenda e Fonte: https://www.wikifox.org/pt/wiki/Rel%C3%B3gio_dos_500_Anos


Réplicas do relógio comemorativo foram instaladas em 28 cidades brasileiras. A primeira delas foi inaugurada em 31 de dezembro de 1997, na cidade de Porto Seguro (BA). Mais tarde, foram erguidos relógios no Farol da Barra (Salvador), na Praia do Leme (Rio de Janeiro) e na Praça Luís Carlos Paraná (São Paulo). O relógio de Porto Alegre foi inaugurado em 22 de junho de 1999, no Parque da Harmonia, localizado no cruzamento das avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Loureiro da Silva, próxima à Usina do Gasômetro. (https://www.wikifox.org/pt/wiki/Rel%C3%B3gio_dos_500_Anos)

"Relógio dos 500 anos, Belém". Legenda e Fonte: https://www.wikifox.org/pt/wiki/Rel%C3%B3gio_dos_500_Anos


Desse modo, a narrativa de que o Brasil teria sido “descoberto”, de que teria quinhentos anos de existência no ano 2000 cumpria o interesse político de afirmar a continuidade histórica. A exaltação da ideia de “encontro das raças” – negros, brancos, indígenas -, idealização do passado sobre o território, sobre a natureza, sobre a cordialidade de um suposto “brasileiro”, valorização da colonização. Sem questionar os vários problemas causados pelo colonialismo, por exemplo: - a escravização de milhões de pessoas, sejam os povos ameríndios, sejam os povos africanos trazidos à força para a colônia; - a estrutura agrária que deu origem ao latifúndio brasileiro; - a permanente perseguição aos camponeses pobres; dentre outros. A grande mídia e o establishment político brasileiro “deitaram e rolaram” na construção da pior narrativa possível sobre a passagem dos quinhentos anos do início da colonização portuguesa na América do Sul. O impacto disso na discussão pública sobre o que é o Brasil, sobre nossa formação enquanto nação, sobre o próprio processo posterior de ruptura com a independência formal e as permanências coloniais foi muito grande, grave e danoso.


Coloco essa questão porque ela é decisiva na construção de uma falsa nostalgia, ou melhor dizendo, uma nostalgia disseminada que é construída a partir de pressupostos falsos e que fortalecem o discurso da Direita brasileira, seja a liberal, seja a reacionária.

Imagine o que este pessoal fará agora em 2022 com os duzentos anos da Independência do Brasil. O título deste texto surgiu a partir da referência de leitura da obra Nostalgia imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, do saudoso professor Ricardo Henrique Salles, historiador brasileiro, falecido no ano de 2021. Ao comentar sobre a permanência de uma visão simpática do regime monarquista brasileiro, em parte da população, sendo que este regime estava na verdade ligado à existência e continuidade da escravidão no Brasil, Salles afirmou:


"A partir de um insight inspirado na passagem de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, que serve de epígrafe à Introdução, perguntei-me sobre a razão de uma certa nostalgia do tempo do Império que parecia perdurar no imaginário brasileiro. [...] A nostalgia do Império carregava historicamente consigo, mesmo que de forma indireta, a nostalgia da escravidão. [...]
A chave que eu queria enfatizar é que não se podia separar a escravidão da política imperial. O edifício institucional do Segundo Reinado era sólido porque repousava sobre a força material e a riqueza geradas pela escravidão. Mas, principalmente porque essa instituição social, com suas marcas brasileiras específicas, notadamente sua elasticidade, como havia assinalado Joaquim Nabuco, assegurara condições de exclusão social essenciais para a construção da civilização política e cultural imperial". (SALLES, 2013, p. 7)

Por mais que o saudoso professor Ricardo Salles tenha estudado, debatido, divulgado suas obras, por mais que tenha questionado a versão das classes dominantes sobre o passado brasileiro, qual é o impacto de sua discussão diante do poder discursivo de um canal de televisão? Vejamos a propaganda de uma novela da Rede Globo, denominada “Nos tempos do Imperador”:


"O personagem de Dom Pedro II foi pensado de uma maneira progressista, o viajante imperador, querido pelo povo, buscava ampliar os horizontes da população investindo na educação do país, além de se envolver com questões importantes no desenvolvimento da economia. O autor Alessandro Marson ressalta que a novela tem uma mensagem de que é possível promover ações positivas e usar o poder pensando mais no coletivo, e Thereza Falcão focou no fato de “Nos Tempos do Imperador" ser uma grande inspiração pela coragem dos personagens". (Site do Portal Globo: https://gshow.globo.com/TV-Liberal/noticia/nos-tempos-do-imperador-conheca-um-pouco-sobre-a-trama-e-curiosidades-historicas-da-nova-novela-das-seis.ghtml)





"Dom Pedro II (Selton Mello) fica dividido entre o amor pela condessa de Barral (Mariana Ximenes) e o casamento com a imperatriz Teresa Cristina (Letícia Sabatella) em Nos Tempos do Imperador - TV Liberal" — Foto TV Globo João Miguel


Por mais que as associações de História, nacional e regionais, por mais que os/as colegas professores trabalhem em suas produções acadêmicas, ou voltadas para um público mais amplo, ou nas salas de aulas pelo país afora, a arena do debate público sobre as questões nacionais é desigual: as questões são debatidas com uma forma desproporcional. E isso não apenas em questões históricas que repercutem no nosso tempo, mas nas outras questões públicas: soberania, custo de vida, direitos trabalhistas e sociais, direito à diversidade, moradia, educação e tantos outros. Por mais que nossos colegas da área de História façam “lives”, “podcasts”, programas em canais do Youtube, a luta é desigual, injusta e muitas vezes sufocada pelos interesses do grande capital, da mídia empresarial, dos interesses políticos da Direita que atualmente está no poder.

Em nome de uma suposta “Famíla, Deus, Tradição e Propriedade”, ocorre a aliança dos setores mais reacionários do Brasil com os grupos liberais, defensores das privatizações, da retirada de direitos previdenciários e trabalhistas, do entreguismo mais abjeto das riquezas nacionais. Apesar da pauta de costumes colocá-los em posições antagônicas, na verdade, a aliança no que diz respeito ao desmonte de um mínimo de soberania nacional e de cidadania continuam a todo vapor, mesmo que parte da Esquerda brasileira tampe os olhos e ouvidos para isso e fique na defesa do “Estado Democrático de Direito” ou de “políticas públicas” que apenas aliviam alguns sintomas dos problemas reais do povo brasileiro. E assim, não trave a discussão que deve ser feita, não confronte certas posições, inclusive históricas.

Sinceramente espero que, caso seja vitoriosa nas eleições que virão, essa mesma esquerda seja capaz de ir além do que já fez no passado, no curto período em que governou, ir além do estabelecimento de algumas políticas públicas, que ajude de fato na construção de um debate sobre os verdadeiros problemas do Brasil. E neste caso está incluída a superação da nostalgia sobre um passado romantizado, de um país cordial, pacífico, que não existiu nem durante o período colonial, muito menos nos “Tempos do Imperador”.


Referência


SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.

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