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A polêmica com Alexandre Linck e o caráter de classe do pessimismo de Nietzsche e seus discípulos



Sued Carvalho, professora.



Recentemente Alexandre Linck do canal Quadrinhos na Sarjeta causou polêmica ao desferir ataques contra comunicadores comunistas como Ian Neves e João Carvalho, seu argumento é baseado em um pessimismo profundo acerca das intenções dessas figuras, defendendo que ambos dizem defender a classe trabalhadora, mas, na verdade, mantém um projeto pessoal de poder, onde se tornariam celebridades.


Os argumentos usados por Linck não são novos, já os ouvi diversas vezes na época em que era estudante na academia, seja como graduanda ou mestranda. Concepções de que projetos coletivos encontram necessariamente contradições irreconciliáveis que levam, de forma inexorável, ao autoritarismo (Usando espantalhos da URSS como exemplos), assim como o ceticismo em relação à verdade (Mesmo que de forma aproximada) e a uma concepção totalizante da sociedade.


Não estamos falando de algo novo ao discutir sobre a polêmica com o Alexandre Linck, pois a tendência intelectual que é hegemônica na academia há décadas está agora reagindo ao ressurgimento do interesse de parte da população no marxismo, no socialismo e no radicalismo de esquerda que trazem consigo, necessariamente, a discussão filosófica acerca da possibilidade de construir um movimento coletivo de caráter popular que tem sua base na concepção de que é possível fazer uma análise totalizante da sociedade capitalista.


Alexandre Link não diz coisas novas, apenas repete o que vem sendo dito na academia contra o marxismo há bastante tempo, porém faz isso com uma pose de rebelde, como se não fizesse, ele mesmo, parte constituinte do ethos contemporâneo dos cursos de graduação e pós-graduação em humanidades. Não surpreende nada, portanto, nos atentarmos para quem o estudioso da nona arte cita como inspiração para seus ataques aos comunicadores marxistas e encontrarmos Friedrich Nietzsche e seu mais famoso seguidor, Michel Foucault.


A História genealógica de Nietzsche, que influencia fortemente Foucault e tem peso gigantesco na produção historiográfica da academia, parte justamente da desconfiança das explicações totalizantes. Para este filósofo alemão o fato é inalcançável, uma realidade exterior ao indivíduo é inacessível e a verdade é um jogo discursivo, cuja função é amansar o sujeito, disciplinar e adaptá-lo a uma moral que rejeita a vida.


Todas essas morais que se dirigem à pessoa individual, para promover sua “felicidade”, como se diz – que são elas, senão propostas de conduta, conforme o grau de periculosidade em que a pessoa vive consigo mesma; receitas contra suas paixões, suas inclinações boas e más, enquanto têm a vontade de poder e querem desempenhar papel de senhor; pequenas grandes artimanhas e prudências, cheirando a velhos remédios caseiros e sabedoria de velhotas; (...)(NIETZSCHE, 2015, p. 84).


Só o que existem são perspectivas que disputam a sociedade. A verdade é sempre um dispositivo de poder para impor a vontade do grupo que está no poder (Não definido por Nietzsche como burguesia, pois ele não mede a questão em elementos econômicos ou de classe, mas em sentido moral, para ele está no poder a moral cristã).


Afirmar que se fala a verdade é sempre uma tentativa de controle, oriunda da vontade de potência que nos move. Portanto o que existe é vontade de verdade. Os homens querem o poder pelo poder e a verdade e a moral são construídas neste processo.


Os dois valores “bom e mau”, “bom e malvado” travaram na terra um combate terrível e milenar; e embora seguramente o segundo valor seja há muito tempo preponderante, não faltam ainda hoje áreas onde o combate prossegue, indefinido. Poder-se-ia até mesmo dizer que não parou desde então de se elevar e, em decorrência disso, tornar-se sempre mais profundo e mais espiritual, de modo que hoje não há talvez sinal mais característico da “natureza superior”, da natureza verdadeiramente espiritual que estar em dissenção no sentido que se acaba de evocar e continuar sendo um verdadeiro campo de batalha em que se defrontam estes opostos. (NIETZSCHE, 2013, p. 77).


A História, para Nietzsche, é sempre uma vontade de verdade e o fato que a baseia é ilusório, pois é inalcançável, isso quando a motivação para o seu estudo não parte de um sentimento nostálgico pretensamente coletivo que nega o presente e a vida, algo que o filósofo absolutamente despreza, como podemos perceber na citação abaixo:


O excesso dos estudos históricos dá origem numa época à ilusão de que se possui essa virtude rara, a justiça, mais do que qualquer outra época. O excesso dos estudos históricos perturba os instintos do povo e impede ao indivíduo, bem como a todos, de atingir a maturidade. (Nietzsche, 2018, p. 43).


É ai que Nietzsche pensa a genealogia. Já que o fato não existe e a realidade exterior é ausente em si, sendo o “sentido” das coisas e a concepção totalizante da sociedade elementos de um “teísmo laico”, a História só pode ser estudada acompanhando o discurso em seu movimento. Sua origem é sempre indeterminada, só se faz possível sua análise a partir do seu resultado e perpetuador: o indivíduo. É possível perceber isso na citação nos parágrafos acima, que se referiu aos conceitos de “bem e mau” que parecem autônomos em seu combate, cujos efeitos são percebidos apenas no efeito que causam nos sujeitos.


Foucault abraçou esse conceito e o colocou nas bases de seu entendimento da História e da sociedade, ao afirmar que:


Cremos que nosso presente se apoia em intenções profundas, necessidades estáveis; exigimos dos historiadores que nos convençam disso. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos. (Foucault, 1979, p. 29).


A História é caótica, a análise é apenas a tentativa, talvez vã, de lançar sentido sobre ela a partir das necessidades existenciais do presente, portanto o estudo genealógico não busca entender origens, consequências diretas, mas movimentos correlatos, efeitos do discurso que perpassa a sociedade, materializando efeitos e condicionando comportamentos. A objetividade é uma ilusão, pois: “a objetividade do historiador é a intervenção do seu querer e é ao mesmo tempo a crença necessária na providência, nas causas finais e na teologia.” (FOUCAULT, 1979, p. 31).


As concepções de Nietzsche (E posteriormente de Foucault) são profundamente cínicas e pessimistas. Todos que buscam a verdade apenas buscam poder, poder pelo poder apenas, a dimensão “do que fazer” com este poder é excluída. Nós, seres humanos, gostamos de poder, temos vontade de poder e buscamos o poder. É isto, está sempre contido nesta sentença um juízo de valor negativo.


Nossa sociedade é um palco de disputa de poder permanente, pois o poder não é concentrado, mas perpassa a todos, afinal somos também ecoamos o discurso, perpetuamos as práticas que são dele emanações. As relações de dominação advém dos costumes, saberes e modos de fazer que são materializações do discurso, não do domínios dos modos de produção, necessariamente. Só há uma verdade, a da vontade de verdade.


(...) O que está em jogo senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. (Foucault, 2014, p. 19).


Tudo que se afirma “verdade” objetivamente factual apenas é a vontade de verdade mascarada de verdade, sem perceber a si mesma. Basicamente, todo aquele que se diz certo está exercendo poder e vontade de potência. “A decisão cristã de considerar o mundo feio o mau transformou o mundo em feio e mau.” (NIETZSCHE, 2003, p. 119).


Para Marx isso é profundamente idealista, pois ele concorda que o Estado e o conhecimento são poder, porém entende que o uso desse poder tem determinação de classe e existe desta forma para dar ordem a uma sociedade baseada na exploração do trabalho de uma classe sobre a outra. É evidente que os comunistas querem o poder, mas não poder pelo poder, pois o querem para derrotar a burguesia enquanto classe.


No marxismo estes conceitos não são caóticos, eles tem raiz nas relações surgidas a partir dos modos de produção, tendo como ponto de partido a forma como nos relacionamos para reproduzir a própria vida. O Estado é um dispositivo de poder, é verdade, porém a forma de uso deste dispositivo também importa e tem origem de classe.


O poder pelo poder não existe em Marx, o poder tem o propósito e o uso daqueles que o detém o determina, algo que o levará a discordar dos anarquistas e que, por sua vez, os levará a abraçar, em alguma medida, Nietzsche e Foucault (Para os anarquistas o Estado é, em si, exploração. Percebem o poder de forma idealista).


Em Nietzsche o poder pelo poder é o que todos buscam e aqueles que procuram justificar a razão pela qual desejam o poder estão se enganando. Destarte a concepção de revolução é ilusória, pois sai um grupo que impunha sua moral e poder e entra outro que vai impor seu poder e sua moral, desrespeitando a vontade de potência de cada um. Viver em sociedade é necessariamente opressivo e todo grupo que ocupar o poder irá inevitavelmente oprimir, pois irá impor seus valores.


Ao fazer o bem e mal aos outros exercitamos o nosso poder sobre eles – é, nesse caso, o que queremos! Fazemos mal a quem devemos fazer sentir nosso poder, pois o sofrimento é um meio muito mais sensível para esse fim do que o prazer; o sofrimento procura sempre a sua causa, enquanto o prazer mostra inclinação para se bastar a si próprio e não olhar para trás. Ao fazer o bem ou ao desejarmos o bem exercemos nosso poder sobre aqueles que, de alguma forma, já estão em nossa dependência (Quer dizer que se habituaram a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar o seu poder porque assim aumentaríamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem que há em estar em nosso poder; (Nietzsche, 2003, p. 45).


Não há verdade, há vontade de potência...


Além do apontado acima existe uma concepção profundamente individualista, afinal se a concepção totalizante da sociedade é ilusória, nenhum projeto coletivo é realmente possível. O que sobra? O cínico ato de viver a vida, aceitando-a apesar dos problemas (O que Nietzsche efetivamente propõe com o amor fati, encontrado no aforismo 276 da Gaia Ciência e no mito do eterno retorno, achado no aforismo 341 da mesma obra) e a superação individual advinda deste sim a vida, que retira o sujeito (Homem, pois para Nietzsche as mulheres são inferiores) da mediocridade de aceitar a castração da vida na moral vigente, tornando-se um novo tipo de homem, formador de uma moral que aceite a vida tal como é.


Todo desenvolvimento e toda superação se dá no ato individual de superar a mediocridade e a fraqueza, aceitando a vida e seus impulsos, derrubando a moral cristã que enfraquece e castra, não esperando dai que venha a felicidade, mas sim a percepção de que a vida é bela também em seu lado grotesco.


Qualquer compaixão com os medíocres é um auxílio para que permaneçam negando a vida, portanto não é um verdadeiro ato de compaixão. A pessoa faminta não vence ao superar a fome e resolver o problema da má distribuição de alimentos, mas ao perceber que a fome faz parte da vida e ser capaz de, mesmo que resolva seu problema individual, compreender que a fome é algo normal, parte da vida.


O que é bom? – Tudo aquilo que eleva no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? – Tudo aquilo que advém da fraqueza. O que é a felicidade? O sentimento que a força cresce – que uma resistência foi superada. Não a satisfação, mas mais poder; não a paz em si mesma, mas a guerra; não a virtude, mas a capacidade (virtude no estilo da renascença, a virtú, a virtude isenta de moralismo). Os fracos e os fracassados devem perecer: primeiro princípio da nossa filantropia. E realmente se deve ajuda-los nisso. O que é mais nocivo que um vício qualquer? – A compaixão em ato para todos os fracassados e os fracos – o cristianismo. (Nietzsche, 2007, p. 19).


Lukács (2021, P. 181) argumenta que a filosofia de Nietzsche se adequa ao contexto da chamada decadência burguesa, onde esta classe, antes revolucionária, busca diminuir as contradições da sociedade (Capitalista) que gestou, naturalizando-as.


Precisamente quanto a intelectualidade burguesa – dentro da margem ideológica dessa razão de ser – adota uma atitude fortemente crítica contra o existente, pois as tendências decadentes tem como consequência necessária que, entre aqueles que apoiam a burguesia e também entre alguns burgueses, a fé em seu sistema social começa a ser abalada. A filosofia (e literatura, etc.) tem a incumbência, objetivamente social e de classe, de tapar as fissuras que se abrem neste processo, ou até mesmo transpor ideologicamente os abismos que vão se mostrando. Essa é a missão daquele conjunto de escritos que Marx costuma chamar de apologética do capitalismo. De um modo geral, essas tendências se tornam hegemônicas após a derrota da revolução de 1848 na Alemanha, embora, naturalmente, já tenham se apresentado antes. O seu caráter fundamental se expressa na tentativa de retirar teoricamente as contradições do sistema capitalista que vão se aparecendo de modo cada vez mais explícito, e isso na medida em que elas “comprovam” que tudo que há de ruim, atroz e contraditório no capitalismo não passa de mera aparência ou de uma perturbação social, passageira e superável.


A concepção de Nietzsche da História, da ciência e do papel do indivíduo é fruto da época da burguesia estabelecida de forma inconteste no poder, buscando naturalizar os fenômenos sociais e descredibilizar movimentos de transformação social em seus textos pessimistas, apresentando como fúteis seus intentos.


Portanto pessimismo significa, antes de tudo, uma fundamentação filosófica à falta de sentido de toda ação política, pois essa é a função social desse estágio da apologética indireta. Para chegar a essa conclusão, o primeiro a se fazer é a desvalorização filosófica da sociedade e da História. (LUKÁCS, 2021, p. 182).


Esta tradição persiste até nossos dias e recuperou sua hegemonia nos departamentos de humanidades das Universidades brasileiras após a queda da URSS em 1991 (Sempre foi muito forte e poderosa, porém o marxismo era um rival à altura até esta data, pelo menos) e as críticas de Alexandre Linck aos comunicadores marxistas partem desse lugar.


Não quero dizer com isso que Nietzsche e Foucault conscientemente tenham escrito seus trabalhos para enfraquecer aqueles que advogam por uma transformação social coletiva (Há quem argumente que sim e não lhes tiro a razão, embora não bote a mão no fogo por esta tese), porém o pensamento de ambos surge no contexto da demanda por uma explicação das contradições da realidade capitalista sem que, no entanto, apresentasse a sua resolução radical. Nietzsche e Foucault, seu mais brilhante discípulo, dedicaram suas vidas, de forma consciente ou não, a equipar intelectuais anticomunistas de direita e de esquerda.


Tudo que escrevemos é fruto dos embates políticos de nossa época e são instrumentalizados dentro deste debate, servindo ora para a classe dominante, ora ao proletariado, independendo esta apropriação da vontade do pensador/filósofo.


A exatidão ou inexatidão do reflexo teórico da realidade objetiva, que existe independentemente da nossa consciência, ou melhor, o grau de nossa aproximação dela, comprova-se na prática, pela prática. (LUKÁCS, 2021, p. 25).


A publicação do texto se dá em uma sociedade compreendida em sua totalidade pelo modo de produção capitalista, cujas contradições podem ser superadas apenas de forma coletiva por aqueles que são a um só tempo principal base de sustentação do sistema e suas maiores vítimas, os trabalhadores.


Ao negar a possibilidade do sucesso de ações coletivas e apresentar os comunistas como apenas “sedentos de poder”, Nietzsche e seus discípulos tornam-se defensores de um projeto coletivo oposto, o da burguesia.


Ao mesmo papel se presta também o Prof. Alexandre Linck e boa parte da produção da área de humanidades contemporânea.

Bibliografia

Foucault. Michel. Nietzsche, a genealogia da História In Machado, Roberto (org). Microfísica do poder. 14. Ed, Edições Graal: Rio de Janeiro, 1979.

_______. A ordem do discurso: aula inaugural no collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. Ed. Edições Loyola: São Paulo, 2014.

LUKÁCS, Gyorgy, A Destruição da razão. Instituto Lukács: São Paulo, 2021.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Martin Claret: São Paulo, 2003.

_______. A genealogia da moral. Editora Escala: São Paulo, 2013.

_______. Além do bem e do mal. Companhia das Letras: São Paulo, 2015.

_______. Da utilidade e da inconveniência da História para a vida. Lafonte: São Paulo, 2018.

_______. O Anticristo. 3. Ed. Editora Escala: São Paulo, 2008.

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