Sued Carvalho, professora.
Qualquer indivíduo honesto há de admitir que as ideias não caem do céu, elas surgem da materialidade das relações sociais e do horizonte intelectual de uma época. É um dos princípios basilares do materialismo histórico a concepção de que:
“Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas (...). (MARX, ENGELS, 2008, p. 94).
Assim, os pensamentos, as ideias de uma época, surgem, necessariamente, dentro do contexto histórico material daquele momento e a partir da ação humana no ato de transformar a natureza e interagir em sociedade. É clássica a introdução do Dezoito de brumário de Luís Bonaparte, onde Marx lança a tese:
Os homens fazem sua própria história; contudo, não o fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe forma transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. (Marx, 2011, p. 25).
Desta forma, a ação humana e as representações que advém dela são produzidas sob certas condições históricas, em um certo horizonte intelectual, das mais reacionárias até as mais progressistas visões de mundo, todas encontram seu lastro nas disputas e nas contradições existentes de determinado momento histórico. As disputas que se referem ao campo das ideias religiosas não estão excluídos disso. A religião é, afinal:
A autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. (Marx, 2013, p.151)
A religião é uma exteriorização dos ideais humanos existentes em uma sociedade em determinada época, o estranhamento do indivíduo diante de si mesmo. As ideias religiosas são um reflexo do mundo material, ou seja, as religiões carregam as aspirações, ideais e transformações de cada época. Isso explica as diversas mudanças ocorridas dentro de instituições religiosas longevas como a Igreja católica, com suas diversas ordens e tendências teológicas, que tornam-se mais reacionárias ou progressistas com as contradições (Formais ou essenciais) de cada momento histórico.
Partido destes pressupostos materialistas é sensato afirmar que nossa época, hegemonizada pelo capitalismo em sua forma neoliberal, em que uma superlucros resultam em uma desigualdade social cada vez mais abissal gerariam contradições religiosas, tais como a teologia da prosperidade evangélica da direita e a teologia da libertação católica à esquerda. Entretanto não é nas tendências internas das vertentes das grandes religiões que irei me focar, mas em uma outra tendência religiosa filha de nosso tempo: A chamada espiritualidade new age.
O capitalismo de nosso tempo é marcado pela “construção de uma cultura populista neoliberal fundada no mercado que promovesse o consumismo diferenciado e o libertarianismo indivual.” (HARVEY, 2014, P. 52), ou seja, o incentivo ao consumismo e a lógica da concorrência. O hedonismo e o prazer individual, em uma sociedade de mercado, são colocados em primeiro plano sob a forma de “capacidade de consumo”. Quem compra mais, vive melhor, pois inclusive os serviços mais essenciais a perpetuação da vida humana, como a saúde, assumem a forma mercadoria. Tudo é comercializável e será comercial.
Esta ética neoliberal nada mais é do que a moral do capitalismo tardio, onde os ideólogos da ordem afirmam “não existir a sociedade, apenas indivíduos”. A tese é, em si, absurda, uma vulgarização brutal dos princípios do liberalismo clássico, porém é o mantra que guia a ação política de forma hegemônica em nossos dias. O indivíduo deve buscar sua felicidade, em concorrência a outros, deve descolar-se (Ou se imaginar descolado) da sua classe social, fazer a si próprio. A construção e consolidação deste éthos tem efeitos colaterais diretos no campo da religiosidade, ou melhor, o fortalecimento de algumas tendências do campo religioso, a adesão cada vez mais massiva a versões reacionárias de catolicismo ou protestantismo, que reforçam um senso de comunidade ou grupo, apesar de seu caráter regressivo e o fortalecimento de espiritualismo mais “libertário” e (aparentemente) progressista, a religiosidade new age, que é o alvo deste texto.
O espiritualismo new age é marcado por um foco absoluto no indivíduo, sua conexão individual com o “divino” (Que pode não levar esse nome), assim como um ecletismo à gosto, podendo ter mais elementos do imaginário cristão ou pagãos (Mais atrativos a quem quer dar um aspecto “rebelde” a sua espiritualidade). Em suma, é uma forma de consciência religiosa onde a experiência subjetiva é sublevada em relação ao pensamento doutrinário e ao ethos de um grupo.
A religiosidade new age, apesar de ser um fenômeno surgido no Século XX, popularizado e massificado na segunda metade deste mesmo período e tornado extremamente popular no Século XXI, em que há uma verdadeira debandada das Igrejas tradicionais (Inclusive não é mera coincidência a popularização da religiosidade new age tenha seu ápice no momento de maior hegemonia das ideias neoliberais, a primeira é consequência da segunda), encontra suas raízes nos combates ideológicos do Século XIX e na reação irracionalista da burguesia no contexto da luta de classes pós-1848 (A primavera dos povos na Europa).
Após a vitória histórica sobre a aristocracia feudal, a burguesia deixa de ser uma classe revolucionária e torna-se uma classe conservadora (Conservadora de sua própria ordem, o capitalismo) e, se antes, a burguesia foi a campeã do racionalismo, do pensamento do progresso social e dos “direitos do homem”, agora precisava de uma filosofia que respondesse as contradições que surgiam da sociedade capitalista, como a desigualdade, a exploração e a pobreza e, ao mesmo tempo, justificasse esse estado de coisas. Aparece ai uma tendência filosófica baseada na “depreciação do entendimento e da razão, a glorificação da intuição, a gnosiologia aristocrática, a recusa do progresso sócio-histórico, a criação dos mitos” (LUKÁCS, 2020, P. 15), a saber, o irracionalismo.
Hegel havia sido, no começo do século XIX, o ápice filosófico do pensamento burguês revolucionário, primeiro por ter resolvido diversos problemas de filósofos burgueses anteriores, como, por exemplo, Kant (A questão da separação da intuição e da realidade, ou coisa-em-si) e por ter centrado sua filosofia idealista na práxis humana, a filosofia hegeliana, apesar de muito abstrata, tem como ponto central a percepção de que os seres humanos são construtores de sua própria história e foi através de sua ação que conseguiram tornar o conhecimento absoluto acessível. Em Hegel o progresso humano é imparável, o devir é ininterrupto e o conhecimento é objetivo (Se em Kant a realidade é inacessível e tudo que existe é a intuição humana sobre esta realidade em-si, Hegel defende que existe mediação entre a intuição ou percepção, o conceito dela advindo e a totalidade).
Boa parte dos grandes revolucionários de esquerda na Alemanha, entre eles, por muito tempo, Karl Marx e Friedrich Engels, foram hegelianos convictos, assim como a filosofia hegeliana havia colocado em cheque diversos poderes e sistemas teológicos tradicionais que haviam servido, durante o feudalismo, como formas ideológicas de dominação, como a Igreja Católica. Lukács resume bem esse conflito (2020, p. 232):
(...) em uma história universal concebida como processo unitário, regida por leis próprias, não há mais lugar para Deus, e que, portanto, a filosofia da História de Hegel, apesar de todas as referências a espírito do mundo, a Deus, etc. só pode ser uma forma polida de ateísmo.
Se a História humana funciona em seus próprios termos e os seres humanos são os responsáveis pela construção do próprio conhecimento, não há lugar para um Deus entendido como “motor” do mundo ou para uma doutrina sistemática, assim como a História está constantemente em transformação, em devir eterno.
Tal pensar filosófico havia feito parte do arcabouço de ideias, junto com o socialismo utópico, dos democratas radicais que realizaram as fracassadas revoluções de 1848. Assim, era preciso rejeitar o pensamento hegeliano em nome de uma filosofia mais conservadora. A filosofia burguesa dali em diante encontraria uma solução bastante eficiente: A mudança de enfoque do “social” para o individualismo militante e a negação do materialismo. Não que o “indivíduo” não fosse um ponto de inflexão central de toda a filosofia liberal e do próprio materialismo, mas agora o indivíduo ganha outra importância, principalmente a partir de Schopenhauer:
Só em Schopenhauer o indivíduo infla até se tornar um fim em si mesmo, absoluto: sua atividade se separa da base social, volta-se para a pura interioridade, cultiva as próprias singularidades, privadas e validadas como valores absolutos. (LUKÁCS, 2020, p. 180).
O indivíduo torna-se um fim em si mesmo. O egoísmo torna-se parte da ética, um valor. A própria realidade deixa de existir em si, uma rejeição não apenas de Hegel, mas mesmo de Kant, onde a realidade existia objetivamente, apenas não era intelectualmente acessível. O mundo, em Schopenhauer, é representação individual. Uma medida ousada, pois “Para chegar a essa conclusão, o primeiro a se fazer é a desvalorização filosófica da sociedade e da História.” (LUKÁCS, 2020, p. 182). A filosofia de Schopenhauer marca um passo importante da evolução do irracionalismo e o estabelecimento de seus princípios filosóficos em amplo espectro, descrito parágrafos acima. Esse pensamento oferece uma reação filosófica aos movimentos de contestação ao capitalismo e dá luz a uma tradição intelectual reacionária burguesa que prega o imobilismo e a desvalorização da responsabilidade social.
Esse conflito é travado, também, no aspecto religioso, onde Soren Kierkergaard procura salvar Deus da irrelevância filosófica. Se os sistemas dogmáticos estão em descrédito intelectual, sendo refutados a nível cada vez mais profundo, pelo avanço da ciência e da filosofia materialista, é preciso rejeitar ambas, tanto o racionalismo quanto o dogma doutrinário.
(...) surge a tentativa de salvá-la partido da subjetividade do homem singular, da experiência religiosa, o que já torna inevitável uma grande proximidade com a estética, pois nos dois casos trata-se, por um lado, de uma imagem do mundo impregnada de fantasia, cuja verdade e realidade só pode ser fundamentada a partir da subjetividade pura; (LUKÁCS, 2020, p. 249).
E completa (2020, p. 250):
Em Kierkergaard, pelo contrário, é precisamente a tendência extremamente consequente para a subjetivação do elemento religioso que deve fornecer um fundamento filosófico para a própria religião, que deve justificar, por meio da dialética qualitativa, a sua independência e validade absoluta.
Assim, podemos perceber as tendências intelectuais que iriam desembocar, no Século XX, na religiosidade new age, nos primeiros irracionalistas do Século XIX e perceber esse fenômeno como uma reação ao materialismo e ao desenvolvimento do pensamento científico. Tanto a justificação da sociedade capitalista, quanto as formas religiosas dai surgidas, encontraram a grande solução para seus problemas na sublevação do “indivíduo como fim em si mesmo” e no “mundo como representação”. Deus não é mais um ser exterior fixo, objetivo, que funciona sob determinadas condições estabelecidas por um credo, mas um “sentimento” constituído pela experiência subjetiva, uma forma de pensar individualista que dispensa a justificação e qualquer perspectiva de objetividade.
A espiritualidade new age aparece nos anos setenta e oitenta do Século passado, no mesmo clima intelectual e diante das mesmas questões onde surge e se aplica o neoliberalismo e procurando reafirmar o mesmo que os primeiros irracionalistas do Século XIX haviam defendido. Quero dizer aqui que a religiosidade new age é um plano maligno, um tentáculo das políticas neoliberais? Não, entretanto ambos são respostas filosóficas reacionárias dentro do horizonte intelectual dos anos 70 e 80, reafirmações dos princípios burgueses irracionalistas do capitalismo em crise. A espiritualidade new age é a forma religiosa do neoliberalismo.
À medida que a ética neoliberal avança, destruindo velhos laços, transformando, em velocidade extrema, transformando o direito em produto, descolando, a nível ideológico, a felicidade e a satisfação individual do bem estar social, as formas religiosas new age popularizam-se mais e mais e acabam, de forma colateral, reforçando o próprio ethos neoliberal: O mundo, Deus, a verdade, são representações e projeções individuais, a felicidade consiste em encontrar-se consigo mesmo.
O pensamento new age, entretanto, assume formas menos reacionárias do que seu irmão, o neopentacostalismo. Enquanto o pensamento new age abraça a ética neoliberal e é sua expressão religiosa por excelência, o neopentecostalismo aceita a forma econômica do neoliberalismo com a teologia da prosperidade, mas não a sua ética, apegando-se ao patriotismo e ao nacionalismo fascista como construtor de uma sentimento de comunidade, porém ambos são disputas dentro do horizonte de expectativas do neoliberalismo, em suma: O neopentecostalismo é o cristianismo em barganha com o neoliberalismo, enquanto o pensamento new age é a sua realização teológica. Nenhum dos dois o nega a ordem dominante, embora o new age pareça mais atraente a uma parcela “inconformista” da burguesia e da pequeno-burguesia entediada em seu conforto.
A espiritualidade new age é, em essência, contraditória ao materialismo histórico, negando todos os seus princípios, e firmemente baseada na ética do consumismo neoliberal, combater estas ideias na esquerda é urgente e não haverá uma retomada do movimento comunista de massas sem uma critica contundente desta forma religiosa.
Bibliografia
HARVEY, David. O neoliberalismo: História e implicações. 5ª ed. Edições Loyola, São Paulo, 2014.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerback, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão e seus diferentes profetas. 1ª ed. Boitempo editorial, São Paulo, 2008.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3ª ed., Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.
Marx, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2011.
LUKÁCS, Gyorgy. A destruição da razão. 1ª ed. Instituto Lukács, Maceió, 2020.
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