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PRISÃO DE BOLSONARO? 5 passos pra não ser feito de besta


Foto: Antonioni Cassara/Mídia Ninja

Passo 1 : hegemonia em disputa pré-1964


Processos de ruptura institucional não são instituídos de qualquer jeito. Algo da gravidade de um golpe, ou de uma revolução, depende de requisitos fundamentais. Numa síntese, tomando emprestado a noção de Disputa Hegemônica, de Gramsci, os aparatos jurídicos, políticos e sociais são sempre disputados por agentes sociais. Mais ainda, todos os muitos vetores resultantes dessas disputas sofrem objetiva influência das idéias, da comunicação e dos discursos que forjam ações e justificam intervenções no ordenamento jurídico e na economia real.

Não é sem motivo que Lênin advertia que processos revolucionários não dependiam apenas das condições objetivas, como; dificuldades financeiras, abandono na assistência social, repressão e violência estatal. Cada uma dessas expressões objetivas de dificuldade de subsistência são importantes, mas, nada caminha sem as tais condições subjetivas; convencimento, consciência da necessidade e da possibilidade de insurreição, organização e planejamento.

Daí que a historiografia cumpre um papel decisivo na prospecção científica das idéias, discursos, ideologias que se põem em movimento no curso dos processos de transformação social. Trabalhos como o de Ricardo Bielschowsky¹ são fundamentais, por exemplo, para materializar como a disputa pela hegemonia do comando da ação sobre o Estado Brasileiro é indispensável na compreensão do Golpe de 1964. Muitos projetos estavam em disputa, e, o golpe se forjou a partir da hegemonia de um tipo de defesa reacionária, e, desses ideários conservadores, contra as propostas de desenvolvimento nacionalista em curso no Brasil nas décadas de 1930-1960.


1 - Bielschowsky, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. São Paulo: Contraponto, 3.ed., 1996.


O professor Caio Navarro de Toledo oferece uma síntese dessas idéias e de alguns dos mais importantes representantes das suas defesas. Elenca o professor:


1) Liberalismo não-desenvolvimentista, de orientação não-industrialista. "Neoliberais" reunidos em torno da UDN, da FGV, do Conselho Nacional de Economia, da Associação Comercial do Estado de São Paulo e outras entidades. Entre os mais conhecidos defensores destas posições estavam Eugênio Gudin e Octávio Bulhões;

 

2) Liberalismo desenvolvimentista, de orientação não-nacionalista. Perspectiva ideológica que se vincula à burocracia pública. Entidades representativas: BNDE, Comissão Mista Brasil-EUA. Entre seus economistas, destacam-se Roberto Campos, Lucas Lopes, Glycon de Paiva etc.;

 

3) Desenvolvimentismo privatista: CNI, FIESP. Roberto Simonsen, João Paulo de A. Magalhães, Hélio Jaguaribe e outros;

 

4) Desenvolvimentistas nacionalistas. Entidades como ISEB, CEPAL, setores do BNDE, PTB. Figuras representativas: Celso Furtado, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Evaldo C. Lima, Guerreiro Ramos e Vieira Pinto;

 

5) Socialistas/Comunistas. PCB e PSB. Intelectuais representativos: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães e outros.


TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 13–28, 2004.


O Golpe civil-militar de 1964 só é possível graças ao consórcio entre Liberalismo não-desenvolvimentista, de orientação não-industrialista e Liberalismo desenvolvimentista, de orientação não-nacionalista.

Esse passo 1, portanto, pretende chamar atenção para as disputas econômicas e ideológicas que se colocam em cada processo de transformação. Daí que estar atento aos ideais em disputa no nosso quadro atual não permite que sejamos feitos de besta, abre nossos olhos para o teor extremamente retrógrado das narrativas que conseguem espaço na luta hegemônica. Em disputa no quadro ideológico e econômico brasileiro, cenário esse que abre a possibilidade da tentativa de um golpe de estado no Brasil, estão interesses extremamente mesquinhos e personalistas de agentes políticos (civis e militares) que expropriam bens públicos para sua locupletação personalíssima.

Alguns dos consórcios que se forjam na espúria tentativa de romper com as fragilíssimas garantias constitucionais e solapar o resultado da eleição majoritária à presidência, em 2022, estão fundamentadas nesse mesquinho jogo de interesses particulares, que precisa ser referendado e justificado por um discurso que lhes ofereça alguma legitimidade. Daí a importância na insistência da intervenção militar. Esse ideário, reacionário, não é simplesmente uma proposta de ação, é isso e é também uma disputa ideológica, que pretende consolidar no imaginário social a insuspeição de militares e a formatação de uma “consciência social” de pureza dos interesses dos agentes das forças armadas.

Também não podemos ser feito de besta quanto aos demais interesses que se articulam, em maior ou menor proporção, ao ideário reacionário do consórcio golpista de 2022-2023. Quer dizer, há grupos políticos e grupos de interesse econômicos, que não enxergavam problema na proposta central do consórcio golpista: solapar a democracia e repartir os bens públicos entre meia dúzia de batedores de carteira, fardados ou não. Agentes do campo político e atores econômicos trataram os movimentos golpistas como uma possibilidade de conquistarem espaços no mercado eleitoral e nas estruturas estatais sem a necessidade de terem que se consorciar com uma frente ampla que se forjava em torno da candidatura de Lula.


Passo 2: golpe de 1964 e a execução hegemônica do pensamento Liberal


Precisamos aprender com nosso passado recente e compreender bem o que significou, no Brasil, a ruptura da frágil democracia brasileira. Num resumo oferecido por Florestan Fernandes, temos que os consórcios civis e militares que deram consecução ao golpe ditatorial de 1964 visavam interromper um tênue, mas promissor, processo de modernização democrática e uma possibilidade de intervenção do Estado na direção de um desenvolvimento econômico que privilegiasse investimentos na indústria nacional e na formação de um capital nacional capaz de alancar o consumo e o desenvolvimento econômico.

“(...)O que se procurava impedir era a transição de uma democracia restrita para uma democracia de participação ampliada (...) que ameaçava o início da consolidação de um regime democrático-burguês, no qual vários setores das classes trabalhadoras (mesmo de massas populares mais ou menos marginalizadas, no campo e na cidade) contavam com crescente espaço político.(...)” (FERNANDES, Florestan. Brasil, em compasso de espera, São Paulo: Hucitec, 1980, p.113.)


Em 2022 a “Frente Ampla” em torno de Lula esteve longe de se configurar uma ameaça aos interesses do Capital, mas, de alguma maneira, significava um reordenamento da condução das políticas liberais em curso. Daí que o passo 2 não permite que sejamos feitos de besta e lança luz no ideário que disputa a hegemonia política de nosso tempo. Estamos diante da defesa de um agravamento das políticas de concentração de investimentos nos interesses estritos dos privatistas e rentistas mais neoliberais e de uma crescente minimização das políticas públicas dirigidas aos mais vulneráveis.

O golpe de 2022-2023 reunia um ideário reacionário que tentava, sob o espectro da narrativa de valores cristãos, patriotismo acrítico e culto militarista, travestir as corruptas vontades de grupos fardados, ex-fardados e aliados próximos. Mas, além dessa fantasia reacionária, flertaram com os consórcios golpistas, um punhado de grupos empresariais e políticos que nem enfrentaram a sanha golpista, nem conseguiram ser acolhidos pelos consórcios do golpe.  Talvez aqui estejamos diante de uma grande pista sobre o calcanhar de Aquiles dessa intentona reacionária e corrupta.


Passo 3: a participação da elite econômica e política no apoio ao golpe de 1964


Para o desencanto dos mais ingênuos, nem tudo é tão evidente como gostaríamos. Mesmo entre consórcios golpistas há suficiente heterogeneidade de interesses, divisões ideológicas, distinções de vontades pessoais e coletivas, capacidades de agir e dirigir processos políticos. Daí que ganha força a compreensão das distintas engenharias políticas e sociais que abrem espaço para pretensões de transformação social.

No caso do golpe de 1964, trabalhos de pesquisa evidenciam com máxima transparência os complexos arranjos políticos e econômicos que foram necessários para a execução da tomada de poder e expropriação dos bens públicos.

René Dreifuss² chama atenção para o papel decisivo da articulação entre não militares e aprofunda o que foi uma espécie de grande apaziguamento de interesses diversos, mesmo dentro das forças armadas. Demonstra como foi crucial na engenharia política do golpe ditatorial de 1964, a participação de blocos de líderes empresariais e representantes da burguesia financeira.

2 - Dreifuss, René. 1964: a conquista do Estado. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.


Elio Gaspari³, contribui elencando documentos e evidências da participação ativa de uma elite econômica e intelectual que deu sustentação ao golpe ditatorial, de uma maneira tal que não se permite imaginar a consecução do golpe de 1964 sem a intricada articulação civil-militar.

3 - GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.


Edmar Morel, no seu clássico trabalho “O Golpe começou em Washington”, reúne elementos fáticos indiscutíveis da estratégica ação de articulação internacional em favor do golpe ditatorial. Ainda que a produção historiográfica discuta a questão do ponto de partida do golpe, não parece existir qualquer objeção concreta sobre a relevância do apoio externo na consecução da ação ditatorial. O trabalho de Morel resgata a relação do embaixador dos EUA com os grupos golpistas de 1964 e sublinha a intervenção objetiva daquela embaixada no apoio do golpe contra Jango.

“(...)A seguir, [Gordon] descreveu-me a situação política no Brasil, que se deteriorava dia a dia, não só do ponto de vista dos progressos comunistas, mas também quanto ao esfriamento das relações com os Estados Unidos, e concluiu:

- De você quero três coisas: primeiro, desejo saber qual a posição das Forças Armadas; segundo, se tenho possibilidades, através de você, de exercer qualquer influência nesse terreno; terceiro e principalmente, não quero ser surpreendido(...)”. WALTERS, Vernon. Missões Silenciosas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1986, p. 339.

4 - MOREL, Edmar. O Golpe Começou Em Washington. Civilização Brasileira, 1965.


O passo 3, então, não nos permite ser feito de besta porque alerta para a importância da participação de setores econômicos e políticos no apoio às pretensões golpistas. E, na tentativa do golpe 2022-2023, talvez o que mais tenhamos notícia é sobre o ensimesmado consórcio reacionário, que imaginou ser capaz de realizar a abolição violenta do Estado Democrático de Direito sem a necessária articulação com os interesses econômicos e políticos locais e sem o diálogo com representantes internacionais.

 

Passo 4: a falta de participação da elite econômica e política na pretensão golpista dos militares em 2022.


Uma evidência bem forte no sentido de que o consórcio golpista, em 2022-2023, descuidou de considerar a estratégica participação de setores econômicos e políticos locais e falhou na tentativa de se articular com a comunidade internacional, é a declaração do ex-chanceler do México, Jorge Castañeda, em entrevista concedida à CNN internacional.

“(...)Com a exceção do Brasil, os Estados Unidos não foram uma fonte de força para a democracia na América Latina, em um momento que ela estava enfraquecida por todos esses eventos que nós vinhamos falando. No caso do Brasil, sim, os Estados Unidos convenceram, persuadiram as Forças Armadas brasileiras a não perseguir um golpe militar contra o presidente Lula, que foi eleito no final do último ano e tomou posse em primeiro de janeiro, e foi quase deposto em um golpe com grande participação militar em 8 de janeiro. Os EUA tiveram um importante papel em fazer com que isso não tivesse sucesso. Mas no caso do México, no caso de El Salvador e no caso de outros países, os Estados Unidos não vêm sendo uma presença forte pelo fortalecimento da democracia na América Latina(...)". https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/acao-dos-eua-impediu-golpe-no-brasil-diz-ex-chanceler-mexicano/.


Sobre as dificuldades de Bolsonaro e seus aliados se alinharem aos setores empresariais mais relevantes, mas, ao mesmo tempo, sobre a ausência de uma posição crítica desse empresariado frente ao avanço golpista, podemos observar o levantamento do Grupo Folha. O levantamento jornalístico partiu da seguinte premissa: “Nos últimos meses, declarações e atos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) trouxeram discussões sobre risco de ruptura institucional”. Diante do evidente ensaio golpista, o Grupo Folha buscou saber como os principais empresários do país recebiam as falas de Bolsonaro: “De qualquer modo, para avaliar como essas falas presidenciais afetam a economia, o UOL perguntou a 60 empresas, gigantes de vários segmentos, o que seus dirigentes achavam da situação”.

Diante das respostas dos empresários e de algumas negativas de respostas o trabalho jornalístico apresenta as seguintes questões:

“(...)Para Vinicius Müller, doutor em história econômica e professor do Insper, a explicação mais intuitiva é relacionada à imagem das empresas. [A pergunta feita às empresas] não é fácil. É algo muito delicado porque qualquer fala pode ser entendida como sendo uma opinião favorável [ao golpe], mesmo que não esteja fazendo isso diretamente. Isso pode dar a entender que aquele líder [empresarial] está de fato apoiando esse tipo de solução [autoritária] - que no passado já foi entendida por muita gente como sendo uma boa solução(...)”.

“(...)De acordo com Rocha, há uma "dimensão mais sutil", que envolve o apoio do empresariado à agenda econômica que é representada pelo governo Bolsonaro, personificada na figura do ministro da Economia, Paulo Guedes. Existe um movimento meio hesitante de criticar esse governo e colocar em xeque a agenda econômica que ele representa. Isso vai ficar mais claro quanto mais se aproximar a eleição. Aparentemente, nenhum outro candidato que tenha chance em 2022 incorpora a agenda econômica defendida pelo empresariado brasileiro. Boa parte do empresariado fica um tanto refém do próprio governo Bolsonaro(...)”. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/05/13/jair-bolsonaro-golpe-militar-empresas.htm

 

O que podemos depreender das entrevistas e das negativas de entrevista ao grupo Folha é esse distanciamento interessado que o grande Capital manteve sobre Bolsonaro e seus aliados. Esses grupos empresariais não se engajaram na execução do golpe bolsonarista, mas, não impuseram objeção por entender que o consórcio golpista de 2022-2023 não seria um inimigo dos interesses econômicos dos grupos. De alguma maneira, avaliaram que o grupo bolsonarista representa a defesa de um agravamento das políticas de concentração de investimentos nos interesses estritos dos privatistas e rentistas mais neoliberais e de uma crescente minimização das políticas públicas dirigidas aos mais vulneráveis.

O consórcio golpista contou com o financiamento de um grupo de empresários, todos fortemente empenhados na consecução do golpe e intrinsecamente vinculados a incessantes violações legais (ver mais na matéria):

“Empresários que defenderam golpe têm ligação com desmatamento na Amazônia e no Sul do país”. Rede Brasil Atual, 30/08/2022. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/empresarios-que-defenderam-golpe-tem-ligacao-com-desmatamento-na-amazonia-e-no-sul-do-pais/.

 

Mas isso não foi suficiente para mobilizar os estratos mais relevantes do setor empresarial no Brasil. Não obstante a aproximação com um bloco de empresários, financiadores da execução golpista, o consórcio bolsonarista imaginou que seria capaz de ser bem sucedido na pretensão de ruptura institucional sem se articular com os tomadores de decisão mais relevantes do mercado nacional e sem qualquer conexão com o Capital internacional circulante no mercado interno.

O passo 4 nos previne de ser feitos de besta na medida em que ressalta que não tivemos uma violenta ruptura do Estado Democrático de Direito, não porque em si um golpe é uma violência a ser rechaçada, mas, porque a falta de participação da elite econômica e política na pretensão golpista dos militares em 2022-2023 enfraqueceu seu poder de ação.

 

Passo 5: a falsa e velha oposição entre golpistas e legalistas


Até antes da ação da Polícia Federal do dia 07 de Fevereiro de 2024 havia clara simpatia, na imprensa e na política, aos chamados militares legalistas.

A nomeação do atual ministro da Defesa foi uma repercussão desse falso dilema. A narrativa era a de que Múcio significava uma possibilidade de fortalecimento de uma tal ala “legalista” nas forças armadas, e, dessa maneira, estratégia correta para driblar o furor golpista da entre militares.

A jornalista Eliane Catanhede textualiza esse engodo em forma de análise. No artigo intitulado “O desafio de Lula: afastar os militares golpistas sem confrontar os legalistas e as forças armadas”.

Diz a jornalista:

“(...)O melhor para Lula e o Brasil é ele manter o processo de pacificação, atraindo os legalistas e impedindo que eles, por corporativismo, se unam aos hostis. Não é com um ministro petista, ou esquerdista, que vai conseguir. Para Múcio, é muito fácil retomar a vida boa no Recife. Para Lula, ruim com Múcio, pior sem ele(...).

“O desafio de Lula: afastar os militares golpistas sem confrontar os legalistas e as forças armadas”. Estadão. 17/01/2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/eliane-cantanhede/o-desafio-de-lula-afastar-os-militares-golpistas-sem-confrontar-os-legalistas-e-as-forcas-armadas/

 

Pois o passo 5 não nos permite ser feitos de bestas porque rechaça a falsa e velha oposição entre golpistas e legalistas. A historiografia já deixou muitíssimo claro que não há essa cisão simplista nas forças armadas. Antes, há de se compreender que as instituições militares são organizações muito complexas e que seus operadores engendram interesses diversos e matizados, de uma maneira tal que a oposição simplista entre bandidos e mocinhos mais turva do que esclarece as distintas posições entre militares.

“(...)Ao mesmo tempo, clichês sobre o golpe de 64, os militares e o regime também vão sendo abandonados, como a idéia de que só após 1968 houve tortura e censura; a suposição de que os oficiais-generais não tinham responsabilidade pela tortura e o assassinato político,5 a impressão de que as diversas instâncias da repressão formavam um todo homogêneo e articulado,6 a classificação simplista dos militares em "duros" ou "moderados" etc. Por tudo isso, podemos falar de uma nova fase da produção histórica sobre o período.(...)”

“(...)Existem muitas tentativas acadêmicas de criação de uma tipologia dos grupos militares, tarefa algo difícil, como se vê pela multiplicidade de exemplos listados, mas certamente deve ser abandonada a divisão duros/moderados. Até porque a posição em relação à tortura é apenas um dos critérios possíveis de classificação, havendo a necessidade de também se considerar outros fatores, como formação militar, laços de lealdade e posição em relação ao desenvolvimento econômico do país. Como se sabe, há diferenças significativas entre militares formados nesta ou naquela instituição, tanto quanto havia bastante controvérsia quanto ao papel do capital estrangeiro no crescimento do Brasil. Aspecto ainda mais complexo, as redes de lealdade que se estabelecem entre camaradas de caserna muitas vezes suplantam ou ignoram diferenças políticas ou ideológicas(...)”. (FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004).


Esse passo 5 é muito importante. A sedução dessa hipotética ala legalista, que teria agido no sentido de “salvar o país do golpe” está presente mesmo em publicações do campo progressista. Veja o exemplo: Os militares legalistas que, sob riscos, resistiram aos intentos políticos de Jair Bolsonaro. Jornal GGN. Artigo de Patricia Faermann. Disponível em:


O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva (UFRJ), afirma que diante das informações reunidas nas investigações, ainda do 8 de Janeiro de 2023, há duas violações atribuídas a integrantes das Forças Armadas que estão em jogo. “Estamos perante a ofensa do Artigo 359-M do Código Penal — crime de golpe de Estado — e do Artigo 38 do Código Penal Militar — usar meios, funções e cargos das Forças Armadas contra a Constituição ou seja, insurreição — e clara violação do Tratado de Roma, assinado pelo Brasil, que consagra o ordenamento democrático das Nações.”

Na ação da Polícia Federal do dia 07 de Fevereiro de 2024, mais ainda, há de se soterrar de vez a versão ilusória de há um grupo golpista e outro legalista nas forças armadas. Há, fica patente, suficientes diferenças entre os militares, e, decorre disso, distintas formas de relação de cada grupo de militares com o consórcio golpista de 2022-2023.

Mas, depois da sucessão de evidências que confrontam a tese de um hipotético legalismo entre setores militares, temos que reconhecer a ação, não apenas leniente, mas criminosa dos agentes públicos que cometeram crimes de prevaricação, crimes contra o Estado Democrático de Direito e crimes de Omissão Imprópria.

 

O “PULO DO GATO”


              Deixar de ser feito de besta nem sempre é uma opção. Daí, à medida em que temos certas clarezas sobre o que vivemos, as oportunidades de tomarmos medidas para inibir prejuízos são sempre bem-vindas.

              O frustrado golpe de 2022-2023 é uma dessas oportunidades. Estudar bem suas cronologias, seus personagens e a engenharia política que lhe deu sustentação abre campo para mitigarmos avanços semelhantes.

              O passo 5 de como não ser feito de besta é uma dessas oportunidades. Já vimos, no passado recente, a falsa crença nas posturas legalistas nas forças armadas e, pior que isso, a oportunista narrativa de que a democracia brasileira deve qualquer das suas conquistas aos supostos militares defensores das garantias constitucionais. A crença nesse legalismo é falsa, na medida em que, seja no passado ou na tentativa de golpe de hoje, todos os personagens militares listados na trama contra a ordem constitucional operaram em evidente confronto com a lei, em flagrante desobediência de suas obrigações e em franca demonstração de desprezo pela soberania popular. Não ser feito de besta, nesse caso, significa por exemplo, ter consciência de que anistias ou afrouxamentos na cobrança de responsabilidades significa alimentar perigosa e traiçoeira base de fomento golpista em plena cúpula das forças armadas.

              O passo 4 para não ser feito de besta, é outro. As ausências das elites econômicas e políticas na pretensão golpista de 2022-2023 não significam qualquer suspiro de aliança dessa elite com o povo brasileiro. O golpe bolsonarista se recente de uma incompetência de berço: Bolsonaro e seus aliados são incapazes de exercer articulações duradouras com grupos de interesse que não sejam subordinados aos seu comando.

É assim que Bolsonaro viu, apesar de eleger importante bancada de deputados e senadores, as suas relações com o congresso se transformarem em cinzas. Temos acompanhado, através da operação da Polícia Federal, que Bolsonaro tentou impor, no grito e na truculência, a adesão de seus ministros ao golpe iminente. As ausências de representantes dos centros mais estratégicos do mercado na execução da tentativa de golpe oferece mais uma fração de explicação dos motivos de seu fracasso, no entanto precisa servir de advertência aos setores organizados da sociedade o comportamento silencioso e observador. Se, de um lado, Bolsonaro e seus aliados não foram capazes de (ou não tiveram discernimento suficiente) de capturar grupos econômicos ainda mais relevantes do que os que marcharam com os golpistas, de outro, ficou muitíssimo evidente que esses agentes de mercado não se opõem ao espírito reacionário e autoritário dos golpistas. Quer dizer, em novas jornadas contra a nossa fragilíssima ordem constitucional, uma direção menos pusilânime como a de Bolsonaro pode perfeitamente pactuar articulações com o mercado, desde que se comprometa em sustentar seus interesses.

              Sem conhecer a nossa própria história, sem enfrentar os desafios de compreender as sempre complexas ações dos grupos políticos e econômicos, sem perceber que os agentes sociais se articulam de formas inventivas e quase nunca homogêneas e cristalizadas, estamos fadados a ver direitos e conquistas serem usurpadas numa espécie de “déjà vu político e histórico. Mas, bem sabemos ao ler o Dezoito Brumário de Louis Bonaparte: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.

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